quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Perguntas à Língua Portuguesa de Mia Couto

Eu tinha em mente quando crie esse blog somente compartilhar aqui meus próprios textos para o mundo. Porém, não resisti e então irei começar a divulgar textos, frases e pensamentos os quais eu realmente concordo e admiro. Hoje, tenho a graça de mostrar a vocês um texto do escritor moçambicano Mia Couto. "Perguntas à Língua Portuguesa" é um texto maravilhoso e muito criativo em que o autor lança questionamentos à arbitrariedade do signo linguístico e instiga o leitor a "falinventar", a criar novas palavras usando a sua própria lógica. Espero que vocês gostem tanto quanto eu :)
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Perguntas à Língua Portuguesa 

Venho brincar aqui no Português, a língua. Não aquela que outros embandeiram. Mas a língua nossa, essa que dá gosto a gente namorar e que nos faz a nós, moçambicanos, ficarmos mais Moçambique. Que outros pretendam cavalgar o assunto para fins de cadeira e poleiro pouco me acarreta.
A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia. O que me apronta é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o voo. Meu desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da Vida. E quantas são? Se a Vida tem é idimensões? Assim, embarco nesse gozo de ver como escrita e o mundo mutuamente se desobedecem. Meu anjo-da-guarda, felizmente, nunca me guardou.
Uns nos acalentam: que nós estamos a sustentar maiores territórios da lusofonia. Nós estamos simplesmente ocupados a sermos. Outros nos acusam: nós estamos a desgastar a língua. Nos falta domínio, carecemos de técnica. Ora qual é a nossa elegância? Nenhuma, excepto a de irmos ajeitando o pé a um novo chão. Ou estaremos convidando o chão ao molde do pé? Questões que dariam para muita conferência, papelosas comunicações. Mas nós, aqui na mais meridional esquina do Sul, estamos exercendo é a ciência de sobreviver. Nós estamos deitando molho sobre pouca farinha a ver se o milagre dos pães se repete na periferia do mundo, neste sulbúrbio.
No enquanto, defendemos o direito de não saber, o gosto de saborear ignorâncias. Entretanto, vamos criando uma língua apta para o futuro, veloz como a palmeira, que dança todas as brisas sem deslocar seu chão. Língua artesanal, plástica, fugidia a gramáticas.
Esta obra de reinvenção não é operação exclusiva dos escritores e linguistas. Recriamos a língua na medida em que somos capazes de produzir um pensamento novo, um pensamento nosso. O idioma, afinal, o que é senão o ovo das galinhas de ouro?
Estamos, sim, amando o indomesticável, aderindo ao invisível, procurando os outros tempos deste tempo. Precisamos, sim, de senso incomum. Pois, das leis da língua, alguém sabe as certezas delas? Ponho as minhas irreticências. Veja-se, num sumário exemplo, perguntas que se podem colocar à língua:
Se pode dizer de um careca que tenha couro cabeludo?
No caso de alguém dormir com homem de raça branca é então que se aplica a expressão: passar a noite em branco?
• A diferença entre um ás no volante ou um asno volante é apenas de ordem fonética?
• O mato desconhecido é que é o anonimato?
• O pequeno viaduto é um abreviaduto?
• Como é que o mecânico faz amor? Mecanicamente.
• Quem vive numa encruzilhada é um encruzilhéu?
• Se diz do brado de bicho que não dispõe de vértebras: o invertebrado?
• Tristeza do boi vem de ele não se lembrar que bicho foi na última reencarnação. Pois se ele, em anterior vida, beneficiou de chifre o que está ocorrendo não é uma reencornação?
• O elefante que nunca viu mar, sempre vivendo no rio: devia ter marfim ou riofim?
• Onde se esgotou a água se deve dizer: “aquabou”?
• Não tendo sucedido em Maio mas em Março o que ele teve foi um desmaio ou um desmarço?
• Quando a paisagem é de admirar constrói-se um admiradouro?
• Mulher desdentada pode usar fio dental?
• A cascavel a quem saiu a casca fica só uma vel?
• As reservas de dinheiro são sempre finas. Será daí que vem o nome: “finanças”?
• Um tufão pequeno: um tufinho?
• O cavalo duplamente linchado é aquele que relincha?
• Em águas doces alguém se pode salpicar?
• Adulto pratica adultério. E um menor: será que pratica minoritério?
• Um viciado no jogo de bilhar pode contrair bilharziose?
• Um gordo, tipo barril, é um barrilgudo?
• Borboleta que insiste em ser ninfa: é ela a tal ninfomaníaca?
Brincadeiras, brincriações. E é coisa que não se termina. Lembro a camponesa da Zambézia. Eu falo português corta-mato, dizia. Sim, isso que ela fazia é, afinal, trabalho de todos nós. Colocámos essoutro português – o nosso português – na travessia dos matos, fizemos com que ele se descalçasse pelos atalhos da savana.
Nesse caminho lhe fomos somando colorações. Devolvemos cores que dela haviam sido desbotadas – o racionalismo trabalha que nem lixívia. Urge ainda adicionar-lhe músicas e enfeites, somar-lhe o volume da superstição e a graça da dança. É urgente recuperar brilhos antigos. Devolver a estrela ao planeta dormente.
Mia Couto 

sábado, 3 de agosto de 2013

O tesouro de papai

Que tal lermos um conto? 

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O tesouro de papai

Já fazia um ano que aquela garagem não era tocada. Ninguém se quer entrava lá depois da morte do papai e tudo estava como ele tinha deixado. Porém, já era época de nós limparmos aquela bagunça. Mamãe, a que talvez tenha mais sofrido do ano passado para cá, já tinha vendido o carro e estava organizando uma faxina para aquele sábado. Eu e minhas duas irmãs mais velhas, Maria e Rose, iríamos ajudar ela a arrumar tudo e colocar no lixo algumas coisas que não iríamos usar mais.
Quando fui tomar café, as três mulheres já estavam na cozinha. Logo notei que havia algo estranho: ninguém falava nada. Isso não era normal e eu sabia o porquê: iria ser difícil nos desfazermos das coisas do papai.
Mamãe mandou nós tomarmos nosso café rápido, pois levaríamos o dia inteiro para fazer a faxina. A chata da Rose saiu da mesa reclamando, como sempre, que não queria estar no meio da poeira, o que era mais uma forma de fugir da realidade.
Eu lembro que adorava ficar com o papai naquela garagem. Era tão bom ir lá todos os fins-de-semana, quando ele estava em casa, brincar com ele. Na garagem sempre tinha o que a gente precisava. Se eu queria um barbante para amarrar um carrinho ou um lápis para fazer a lição de casa, era só ir até a garagem do papai. Agora parecia tão vazia sem ele por perto...
Logo que entrei, já vi os troféus do papai em cima de uma estante pendurada na parede. Ele participou de várias competições de tênis, e ele e Maria treinavam de vez em quando. Num canto da garagem mamãe já tinha achado uma caixa com as raquetes e bolas de tênis do pai e tinha mandado Maria levar para fora no local onde elas haviam preparado ontem para as coisas que não iria para o lixo.
Rose, a mais estudiosa da família, se dirigiu para a escrivaninha onde havia um computador e lá encontrou alguns rabiscos de plantas de casas que o papai fazia antes de morrer. Neste momento mamãe pediu minha ajuda para carregar umas latas de tinta e ferramentas para fora da garagem, enquanto ela e Maria carregavam umas caixas com lixos para outro canto do quintal.
Até que ouvi mamãe e Maria conversarem:
- Maria, ponha isso lá fora em qualquer parte.
- Junto com as outras?
- Não ponha junto com as outras, não. Senão pode vir alguém e querer fazer qualquer coisa com elas. Ponha no lugar de outro dia.
Logo que vi quais era as caixas que as duas estavam falando, sai correndo até Maria, peguei de suas mãos a caixa e fugi para dentro de casa. Não ouvi mamãe me xingando, só o que eu queria é ver o que havia dentro das caixas que papai nunca deixou eu ver, dizia que era seu tesouro.
Aquele foi o melhor dia da minha vida. Imagine você o que é para um garoto de 10 anos como eu encontrar uma caixa cheia de revistinhas de quadrinhos que são consideradas relíquias. Meu pai tinha razão, era mesmo um tesouro. Eu só sabia ficar parado olhando para aqueles gibis de faroeste antigos, até com pó por cima, que eu sabia que eram de quando meu pai tinha a minha idade.
Rose veio me chamar no quarto naquela hora, dizendo que a mamãe a mandou. Fui até a garagem e ela perguntou o que havia acontecido e eu, não querendo revelar o segredo do meu papai, só lhe disse que havia encontrado o tesouro dele e que eu o queria para mim. Mamãe disse que tudo bem e eu vi por rabo de olho que Maria e Rose estavam com ciúmes e isso me fez ficar mais feliz. As revistinhas seriam segredo meu e de papai.
Virei noites lendo as revistinhas Texas. Parecia que papai estava ali comigo se divertindo com aquelas historinhas, como eu acho que na sua infância deve ter sido. Como eu queria poder perguntar para ele.
A minha infância já não era mais triste com a marca da morte do papai. Era alegre, pois com o “tesouro de papai”, como eu chamava as revistinhas, me fazia lembrar aqueles dias brincando ao lado do melhor pai do mundo.